O que a ciência diz sobre a relação entre o consumo de ovos como alimentos e a saúde humana.
Há muito o ovo está no centro de diversas discussões quanto a seu valor nutricional e seus efeitos sobre a saúde humana. Em alguns momentos considerado uma fonte barata de proteína e vitaminas em outros visto como um vilão por conter excesso de colesterol e gordura saturada. Nesse post veremos verdades e mentiras sobre os ovos, e o por que muitos ainda o defendem com um alimento saudável.
Primeiramente vamos analisar a composição dos ovos. Segundo a Tabela de Composição de Alimentos, 100 gramas de ovo cozido, o que equivale a cerca de dois ovos, contém 2,9 g de gordura saturada e 397 mg de colesterol, o que aumenta para 4,1 g e 516 mg, respectivamente, quando frito. Em relação ao teor proteico, varia de 13,0 a 15,0 g, dependendo da forma de preparo. Dessa forma o ovo pode sim ser considerada uma fonte de proteína, mas seria ele uma fonte saudável?
A relação entre o colesterol dietético e o colesterol sanguíneo (sérico) é há muito investigada e por um bom motivo, o colesterol tem papel central no desenvolvimento da aterosclerose e consequentemente é um importante fator de risco para doenças cardiovasculares, a principal causa de óbitos no mundo. Quando fazemos essa avaliação, existem alguns fatores que devemos levar em consideração, como a importância do componente genético. Existem variações genéticas de herança mendeliana relacionadas a certa resistência ao colesterol, ou seja, por mais que adotem uma dieta rica em colesterol, alguns indivíduos não apresentaram elevações significativas de seu colesterol sanguíneo e consequentemente de seu risco cardiovascular.
Outro parâmetro de grande importância é o nível basal de colesterol do indivíduo, populações que consomem a dieta ocidental padrão, possuem altos níveis de colesterol basal, o que reduz os efeitos/variações no colesterol sérico, decorrentes da ingestão de colesterol. Por fim, precisamos compreender como o colesterol atua em nosso organismo. É no período pós-prandial (após as refeições) que o colesterol dietético tem seus efeitos mais pronunciados, determinando aumento da inflamação e estresse oxidativo, prejuízo da função endotelial (camada celular interna dos vasos sanguíneos) e potencializando os efeitos deletérios da gordura saturada. Após as refeições ocorre um aumento de até 40% da forma oxidada do colesterol, forma mais implicada no processo de aterosclerose.
Uma vez com essa base conceitual vejamos agora os resultados de alguns estudos:
Fielding et.al conduziu interessante estudo de intervenção avaliando influência de diferentes concentrações dietéticas de colesterol, gordura saturada e gordura insaturada nos níveis séricos de colesterol e suas frações. Como resultados observaram que o aumento da gordura saturada na dieta, teve pouco efeito nos níveis de LDL colesterol (aumento de 6mg/ dl); a dieta rica em Colesterol e Gordura saturada associou-se ao maior aumento do LDL (31mg/ dl) e a dieta rica em colesterol e gordura insaturada associou-se a aumento modesto do LDL (16 mg/dl). Assim sendo, nesse estudo as variações nas concentrações dietéticas do colesterol foram mais relevantes do que a proporção gordura saturada x gordura insaturada na elevação do colesterol sérico.
Metanálise de 17 ensaios clínicos randomizadas publicada em junho de 2020 avaliou a influência de consumo de ovos nos níveis séricos de colesterol de indivíduos saudáveis, concluindo que o maior consumo de ovos se associa a maiores níveis de LDL colesterol e elevação da relação LDL/HDL colesterol.
Engana-se aquele que acredita que o colesterol é o único problema relacionado ao ovo, estudos evidenciam que o consumo de ovos é também fator de risco para alguns tipos de CÂNCER, incluindo câncer de mama, casos fatais de câncer de próstata e câncer de ovário. Vejamos alguns desses estudos:
Metanálise de 13 estudos (coorte e caso controle) publicado pela Sociedade Japonesa de Câncer de mama, encontrou associação positiva entre o consumo de ovos e essa neoplasia.
Metanálise de 18 estudos observacionais prospectivos avaliou a relação entre o consumo de ovo e câncer de mama, próstata e ovário. Houve associação positiva do consumo de 5 ou mais ovos por semana com câncer de mama. Embora limitada pelo desenho do estudo, existe evidência de associação positiva com câncer de ovário e casos fatais de câncer de próstata.
Outro estudo demonstrou aumento de 2x no risco de recorrência e progressão da doença em homens com neoplasia de próstata, quando comparados indivíduos do quartil que mais consumia ovos, com indivíduos que menos comiam ovos.
Possíveis mecanismos fisiopatológicos para essas associações incluem: 1. excesso de colesterol que é precursor de hormônios esteróides, como estrogênio e hormônios androgênicos, que promovem a proliferação celular, podendo estar associados ao aumento do risco de câncer de mama, ovário e próstata. 2. O ato de fritar o ovo produz aminas heterocíclicas, compostos carcinogênicos. 3. O alto teor de proteínas presente no ovo estimula a produção de IGF-1, que promove proliferação celular e progressão tumoral. 3. A colina, presente em grande quantidade nos ovos, está associada a maior incidência de câncer de próstata bem como piores desfechos. Uma possível explicação é sua conversão em óxido de n-trimetilamina (TMAO), aumentando a inflamação e promovendo a progressão da doença.
Outra associação que pode ser desconhecida para muitos é entre o consumo de ovos e diabetes mellitus. Estudo conduzido na China avaliou a relação entre o consumo de ovos ao longo tempo e o desenvolvimento de diabetes mellitus (DM). No total 8545 adultos participaram do estudo e foram acompanhados de 1991 a 2009. No final do estudo, 947 participantes desenvolveram diabetes. Quando comparados os quartil com menor consumo com o de maior consumo de ovos o aumento do risco de desenvolver DM foi de aproximadamente 25%.
Comparando-se indivíduos que consomem 1 ovo, com aqueles que consomem 1/4 de ovo por dia, os primeiros tiveram um aumento de 65% em seu risco. Os achados desse estudo são semelhantes a outras publicações como metanálise de 12 estudos, com um total de 219279 participantes, que obteve como resultado aumento de 39% no risco de DM, comparando o grupo de maior consumo com o de menor. Outros dois grandes estudos de coorte associaram o consumo de 7 ou mais ovos por semana com aumentos de 58% no risco de DM. Em estudo de caso controle realizado na Lituânia, o consumo de 1 ovo por semana associou-se a um aumento de 76% no risco de DM e indivíduos que consumiam 5 ou mais ovos por semana tiveram 3x maior risco do que aqueles que consumiam menos de 1 ovo por semana.
Com tantas evidências dos efeitos negativos do consumo de ovos por que muitos, incluindo profissionais da saúde, ainda o defendem? Isso pode em muito estar relacionado à existência de diversos estudos financiados pela indústria do ovo. Metanálise publicada no Jornal Norte Americano de Medicina do Estilo de Vida avaliou 211 estudos que investigaram a relação entre o consumo de ovos e o colesterol sérico, publicados de 1950 a 2019. Esses estudos foram separados em, estudos financiados por empresas ou órgãos que produzem/ fomentam a produção de ovos e estudos sem esse tipo financiamento. Nas décadas de 50 e 60, nenhum estudo foi financiado pela indústria, enquanto entre os anos de 2010 e 2019, 60% foram. Além do expressivo aumento do número de publicações com esse viés, outro dado que chama a atenção é que 49% dos estudos financiados pela indústria reportaram em suas conclusões informações conflitantes com os resultados do próprio estudo. Por exemplo: aumento do colesterol total descrito como favorável e aumento não estatisticamente significativo descrito como ausência de aumento. Diferença não estatisticamente significativa não é o mesmo que ausência de diferença. Estudos financiados pela indústria tiveram maiores chances de terem incoerências em suas conclusões e de reportarem resultados favoráveis ou neutros em relação seu produto.
Por mais que a indústria se esforce para esconder os efeitos negativos do consumo de ovos, associação com doenças cardiovasculares, DM, câncer, eles são notórios e muito bem embasados em evidências científicas. Não precisamos de ovos, e, de fato, existem diversas fontes saudáveis e até mesmo mais baratas de proteínas, como as leguminosas (feijões, grão-de-bico, soja, dentre outras).
Considere o veganismo, pela saúde, pelos animais e pelo planeta.
Dr. Murilo Vieira Meireles
CRM-SP 215645
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27 - Tabela Brasileira de Composição de Alimentos – TACO 4a edição revisada e ampliada.
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