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  • Foto do escritorMarconi Pequeno

A FILOSOFIA E OS DIREITOS DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS

Atualizado: 4 de dez. de 2020

O problema da dignidade e da inserção dos animais não humanos na comunidade moral.



A preocupação da filosofia com a questão animal não é recente. Ela remonta ao séc. VI a. C., com Pitágoras, para quem todos os animais deveriam ser protegidos em razão da transmigração das almas ou metempsicose, isto é, pelo fato de que os seres humanos podem renascer como animais não humanos e vice-versa. Pitágoras reprovava o sacrifício de animais e associava o seu consumo à própria prática do canibalismo humano. A sua condenação se dava por motivos místicos, mas também por razões morais.  Essa concepção, todavia, não foi seguida por Aristóteles (século IV a. C.), pois, segundo o referido filósofo, os animais estariam distantes dos seres humanos na escala da natureza e, na condição de seres irracionais, deveriam estar a serviço dos homens.


A emergência do cristianismo não modificou substancialmente tal ideia, pois a interpretação dos textos sagrados sugeria que Deus teria conferido aos homens o domínio sobre os demais seres vivos a ponto de, por exemplo, São Tomás de Aquino considerar que o mandamento “não matarás!” não deveria se aplicar aos animais não humanos. Esse postulado expressa bem o antropocentrismo que até então dominou grande parte da história da filosofia ocidental.


Porém, se, no século XVI, essa perspectiva parecia mudar a partir do momento em que Michel de Montaigne passou a condenar a crueldade contra tais animais sob a forma de caça recreativa, confinamento em cativeiro ou consumo para fins de nutrição, concebendo tais gestos cruéis como a própria expressão da decadência humana, no século XVII, com René Descartes, ocorre mais uma retomada do antropocentrismo pelo fato de ele considerar os animais, por serem desprovidos de alma, como seres incapazes de pensar e usar a razão. Com base nisso, o referido filósofo defendia a prática da vivissecção e o experimento com cobaias, reduzindo os animais a autômatos destituídos de pensamento, discernimento e vontade. Essa posição era compartilhada por outros autores, a exemplo de Immanuel Kant, um ardoroso defensor da centralidade do homem no universo e de sua superioridade sobre os demais seres vivos.


Todavia, a hegemonia do antropocentrismo começa a ser abalada a partir do século XVIII, inicialmente com Jean-Jacques Rousseau, o qual conclamava os homens a, na condição de animais diferenciados, proteger todos os demais, ou seja, por serem dotados da faculdade da razão, eles teriam o dever de não maltratá-los. David Hume, por sua vez, assinalava que existem apenas diferenças contingentes e não essenciais entre os homens e os animais não humanos, de modo que estes são dotados de inteligência e também capazes de realizar, por meio do hábito, raciocínios causais.



Nessa mesma linha, Voltaire considerava que os animais deveriam ser respeitados por serem dotados de sentimentos e interesses. Essa ideia também era compartilhada por Jeremy Bentham, o precursor do utilitarismo, ao considerar que os animais não humanos são seres sencientes cuja dor é tão real e moralmente relevante como a dor humana. Assim, para Bentham, a questão não é se eles pensam ou falam, mas sim se eles sofrem. Seguindo essa tendência, Arthur Schopenhauer, no século XIX, afirmava que os animais têm a mesma essência que compõe os seres humanos e, ao criticar o antropocentrismo de Kant, ele amaldiçoava toda a concepção de moral que não fosse capaz de perceber a unidade essencial em todos os olhos que enxergam o sol.


Todavia, a preocupação mais intensa e sistemática com a condição dos animais não humanos começa mesmo no século XX e, mais precisamente, na década de 70. Nesse período, Richard Ryder, ao elaborar o conceito de especismo, postula que também seria apropriado conferir um status moral aos animais não humanos. Essa ideia ganhou contornos mais definidos com a publicação da obra Libertação animal (1975) do filósofo australiano Peter Singer, para quem todos os animais deveriam ser igualmente considerados em seus interesses. Segundo o referido autor, as características particulares e contingentes dos seres humanos (pensar, usar a linguagem, possuir autoconsciência) não servem para atestar a sua superioridade, nem, tampouco, para restringir a dignidade a apenas esta pequena parcela dos seres sensíveis: os humanos. Assim, como todos os animais têm interesse em sobreviver ou não sofrer, não se deve adotar um tratamento desigual para indivíduos que possuem interesses semelhantes.


Mais uma vez, a sensibilidade ou a condição de sofrer e sentir dor aparece como critério que nos permite postular que todos os seres animais devem fazer parte da comunidade moral. Com efeito, não se trata apenas de uma igualdade ontológica (somos todos animais sencientes), mas também de uma igualdade axiológica baseada no valor que há na faculdade de sentir. Ademais, esse princípio deveria fomentar uma nova conduta nos homens em sua relação com os outros animais, a qual se daria por meio de mudanças nos hábitos alimentares, nos métodos de criação, nas experimentações científicas e na sua utilização para fins de entretenimento e lazer.


Acrescenta-se à evidência de que tais animais possuem interesses tão legítimos e vitais como os dos seres humanos, o fato de que eles também são dotados de consciência, emoções, habilidades cognitivas e inteligência estratégica. Eis a razão pela qual devemos, como sugerem Tom Regan e Ronald Dworkin, antes mesmo de reconhecer interesses com base no caráter de senciência, atribuir dignidade ou valor intrínseco aos animais não humanos. Assim, não se trata de defender tais animais com base numa espécie de “bem-estarismo utilitarista”, mas sim em reconhecer que eles possuem a dignidade como atributo ontológico e como uma qualidade que lhes é inerente. Eis, pois, brevemente indicados, alguns postulados que ilustram a preocupação da filosofia com a condição, os interesses e os direitos dos animais não humanos.


Marconi Pequeno



Referências

ARISTÓTELES. Da alma. Lisboa: Edições 70, 2001.

_____________. A ética a Nicômaco. Coleção Os pensadores, São Paulo: Editora Abril, 1980.

_____________. A história dos animais. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

BENTHAM, Jeremy. Introdução aos princípios da moral e da legislação. Lisboa: Dinalivros, 2011.

DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

_______________. O mundo ou tratado da luz e o homem. Campinas: Editora UNICAMP, 2009.

DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

HUME, David. Tratado da natureza humana. São Paulo: UNESP, 2001.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2007.

MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras 2010.

REGAN, Tom. The case for animal rights. Los Angeles: University of California Press, 2004.

SCHOPENHAUER, Arthur. Crítica da filosofia kantiana, Coleção Os pensadores, São Paulo: Abril, 1995.

SINGER, Peter. Ética Prática. Lisboa: Gradiva, 2002.

_______. Libertação animal: o clássico definitivo sobre o movimento pelos direitos dos animais. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

VIOLIN, Mary A. Pythagoras – The First Animal Rights Philosopher. Between the Species, pp.122-127, 1990.

VOLTAIRE. Dicionário filosófico. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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