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SOBRE A IDEIA DE 'SER PARTE'

Reflexões sobre a cosmologia de Anaxágoras



Em algum momento de nossas vidas, somos assaltados pela intuição de que fazemos parte de um todo que ultrapassa muito a nossa capacidade de compreensão – como quando nos questionamos a respeito do tamanho do universo; a respeito da quantidade de estrelas e planetas que devem existir Terra afora. Nestes raros e preciosos momentos, sobrevém a sensação de fazer parte, de estar interligado a um sistema de seres, de influenciar e ser influenciado por ele, mesmo que ocupemos uma pequena porção deste sistema.


Hoje inauguro a minha contribuição no Bloguesia e, neste artigo, pretendo traçar alguns comentários, a partir da minha experiência e dos meus estudos em filosofia, a respeito da ideia de ser parte de uma totalidade.


Na história da filosofia ocidental, costuma-se reconhecer como primeiros filósofos um grupo de homens a que dão o nome de “pré-socráticos”. O leitor talvez já tenha escutado esta expressão e, por ela, entende que estes foram os que vieram antes de Sócrates – o famoso protagonista dos diálogos platônicos. A questão é que a expressão “pré-socráticos” diz pouco ou quase nada a respeito deles; e, além disso, coloca-os num grande balaio como se, entre eles, não houvesse grandes diferenças de doutrina e sistema que valeriam ser notadas e discutidas. Pesa, ainda, uma grande desvantagem para quem se dedica ao estudo de seu pensamento: o fato de só nos restarem fragmentos, anotações de filósofos posteriores, de alguns trechos do que deixaram no papel. Todavia, confesso a vocês, poucos estudos me dão tanto prazer quanto o quebra-cabeça destes fragmentos: por um lado, a frase certeira, o relampejo de uma ideia expressa em algumas palavras; por outro, a perspectiva arcaica – que não deve ser entendida negativamente, como “atrasada” –, a larga imaginação, a capacidade de vislumbrar a totalidade das coisas – fascina-me tudo isto.

Estamos entre o século VII e VI a.C., na região do Mediterrâneo, onde tem vez o alvorecer da filosofia. E pelo que se caracteriza a filosofia neste tempo? Em resumo, os primeiros filósofos buscavam compreender a estrutura do mundo a partir das causas e elementos naturais – daí Aristóteles tê-los chamado de físicos. Até então, o céu, o mar, as montanhas, as frutas, as flores, o ar, eram manifestações divinas; não só manifestações, eles eram a própria divindade. No mundo arcaico, antes do advento da filosofia, a separação entre Natureza e Deuses simplesmente não existia. Por isto, pode-se afirmar que a filosofia, já na Grécia antiga, dá início a um lento processo de racionalização da forma como vemos o mundo e que certamente ainda está em curso (agora, principalmente, sob as mãos da ciência).


Dentre alguns representantes deste período, poderíamos citar alguns dos mais conhecidos e estudados: Tales, considerado o primeiro filósofo, afirmava ser a água o princípio, o arquétipo de tudo; Anaxímenes, afirmava ser o ar; Anaximandro, o indefinido; Pitágoras, defendia a existência real dos números como princípio do cosmos; Heráclito, defendia que uma razão comum ordenava e governava o mundo; grosso modo, cada um deles escolhe como princípio um elemento natural que, dentro do sistema, cumpre a função de ponto convergente de todas as coisas; de onde tudo vem e para onde tudo vai; o centro de um círculo para onde convergem os raios.

Por trás desses sistemas, dessas tentativas de compreender o mundo, subjaz umas das maiores questões de toda história da filosofia e da ciência: Como é possível que a multiplicidade seja una? Ou: o que faz do uno, múltiplo? Esta não é uma questão simples, e dos primórdios da filosofia à física quântica o problema é o mesmo. Buscamos, incansavelmente, um princípio que seja capaz de explicar e desenvolver uma teoria onde englobe, ao mesmo tempo, o um e a multiplicidade.

Para retornar àquela intuição que me referi no início do texto – a de que fazemos parte de algo maior que nós mesmos –, farei a exposição de alguns princípios defendidos por um destes primeiros filósofos, a quem não fiz menção: trata-se da cosmologia proposta por Anaxágoras.

Anaxágoras nasceu em Clazômenas (região que pertencia ao antigo império persa e que hoje compõe parte da Turquia) e, posteriormente, mudou-se para Atenas onde teve um grupo de discípulos e foi mestre de Arquelau, cujo um dos discípulos foi Sócrates. Platão, na Apologia, nos transmite a informação de que o livro Sobre a Natureza, escrito por Anaxágoras, era vendido numa espécie de “livraria antiga” em Atenas. Graças às anotações de Simplício no seu livro Física (490-560 d.C.), restaram-nos alguns fragmentos deste tratado de Anaxágoras.


A seguir, elencarei as proposições centrais de seu sistema (encontradas em seus fragmentos):


  1. No princípio, todas as coisas estavam misturadas em conjunto;

  2. Em relação às coisas pequenas, não há um mínimo de matéria; em relação às grandes, não há um máximo;

  3. Em tudo há uma parte de todas as coisas;

  4. (Tal como no princípio) Agora, todas as coisas encontram-se misturadas;


Uma cosmologia, assim como a teoria do Big-Bang, pretende ser uma espécie de narração de como as coisas vieram a existir. Neste sentido, o estado primordial da matéria na cosmologia de Anaxágoras é uma grande mistura, indistinta, sem qualidades, onde tudo se encontra condensado e extremamente misturado; neste estado, não há um mínimo nem um máximo de matéria, isto é, não importa a dimensão, sempre haverá algo muito menor que uma partícula minúscula e sempre haverá algo muito maior que uma galáxia, por exemplo. É através da ação de uma grande Inteligência (Nous em grego [1]), num movimento espiral, que a matéria mais densa se concentra no centro do espiral e a matéria mais sutil espalha-se sobre a periferia deste espiral. Com este movimento de separação da mistura, começam a se formar os astros, a lua, os seres terrestres, o sol, e a própria atmosfera que engloba e sustenta todos estes astros. Esta ação, todavia, não chega a um término absoluto; segundo Anaxágoras, a Inteligência “expandiu-se, expande-se e expandirá ainda mais”, o que nos levaria a afirmar, hoje, que o movimento espiral ainda está em curso e o universo, a partir desta mistura primordial, segue ampliando seus horizontes.


O que pode causar certa confusão, é o seguinte: como é possível que todas as coisas estejam juntas uma vez que foram separadas no princípio? A esta questão, pode-se dizer o seguinte: como o estado primordial de todas as coisas era uma mistura, mesmo após a separação, cada um dos elementos que (aos nossos sentidos) parecem ser distintos e separados, em realidade, estão todos juntos – todas as coisas compartilham os mesmos ingredientes. A diferença, por exemplo, entre uma árvore e um pássaro seria de que no primeiro predominam certos ingredientes (ou elementos) da mistura que constituem o tronco, as folhas, os frutos; e, num pássaro, concentram-se outros ingredientes, responsáveis pela estrutura óssea, as penas, os órgãos etc. Durante o movimento de distinção, a proporção de cada ingrediente para cada um foi diferente; mas isto não impede que ambos tenham os mesmos componentes, em proporções diferentes. Aristóteles acaba cunhando um termo que ficou atrelado à própria cosmologia de Anaxágoras: o conceito de homeomeria – literalmente partes iguais­ (omoios – igual; meré – parte, porção). Os seres, apesar de distintos, são compostos de partes iguais.


Afirmar que todas as coisas contêm uma parte de tudo, significa dizer que todos os seres compartilham de uma mesma matéria (ou se quiserem, de uma mesma energia) que os constitui. O processo banal da nutrição animal confirma isto: os frutos da terra só podem se desenvolver com sol, terra, água, oxigênio e uma grande quantidade de minerais que são trazidos nestes veículos; por sua vez, ao alimentar-se de uma simples maçã, nos alimentamos de sol, de terra, minerais, assim por diante. Em tudo há uma parte de tudo, não só porque todas as coisas têm origem numa mesma mistura cósmica, mas porque a vida de todos os seres depende da constante troca e comunicação de uns com os outros, para renovar-lhes a vida, para mantê-los parte de um mesmo todo. Assim, com gênio e imaginação, Anaxágoras intuiu que tudo é um, que o múltiplo é um e vice-versa.


Mas não paramos por aqui. Quando Anaxágoras fala a respeito do tamanho dos corpos – de que é impossível encontrar um mínimo ou máximo de matéria – está a nos dar uma definição muito simples de infinito. O termo, de origem latina, é uma negação da palavra finitus, o sem-fim, o não limitado. Os gregos utilizavam a palavra apeiron – também a negação, a privativo, daquilo que é conhecido pela experiência (peiros) –, donde a palavra empírico, experiência. Então, o apeiron era aquilo que não poderia ser experimentado, o desconhecido, o incognoscível; o que não significa que não possa existir, mas apenas que as nossas faculdades sensíveis não o atingem. Mas aqui nos socorre a imaginação e a intuição. A inexistência de um mínimo e de um máximo de matéria significa que a matéria não tem limite algum.

A percepção do senso comum, cujas origens remontam à física moderna, é de um mundo atomizado, de que os corpos são delimitados por fronteiras, de que um todo é o emparelhamento de pequenos átomos que estão ligados, mas permanecem separados. Aprendemos, no ensino básico, a estrutura das células em biologia, uma boa dose de tomismo em física, e a impressão, para a imaginação, é semelhante à de um quebra-cabeça, onde é sempre possível chegar num limite, seja este a célula ou um elétron. Bem, com isto não quero dizer que este pensamento esteja incorreto; pelo contrário, a ciência realiza suas pesquisas e progride graças a esta perspectiva “molecular” da realidade. Entretanto, esta não é a única e exclusiva maneira de observar a natureza; e, ainda que sejam estas teorias aceitas e ensinadas na escola, não devemos nos esquecer que a física vive em constante revisão de suas próprias teorias. Veja, por exemplo, com que velocidade os físicos encontram-se com uma nova partícula que é ainda menor e mais essencial que um elétron (como é o caso da chamada Bóson de Higgs). A grande questão é que, à medida que os instrumentos de pesquisa científica se refinam, novas descobertas vão sendo feitas; porque, o que não era perceptível, pode ser notado graças a um instrumento. Desconfio, portanto, que virão muitas outras partículas daqui pra frente, com tantos outros nomes.


A visão arcaica do mundo (porém não inocente) pode revelar coisas extraordinárias e aproximar-se, a seu modo e com sua linguagem, de pesquisas avançadíssimas em ciência. A intuição de Anaxágoras de que não se chega a um mínimo nem a um máximo, revela que sempre haverá espaço para uma partícula menor e sempre haverá espaço para galáxias novas e maiores das que supomos conhecer. O real é, a um só tempo, inesgotável e pleno de si mesmo: não há vazio, esta é a tese central. O vazio é uma ilusão causada pela limitação de nossa visão, não enxergamos os gases que respiramos do nascimento à morte, mas a atmosfera está plena deles. A isto os estudiosos dão o nome de continuidade absoluta do ser. No fragmento 8, Anaxágoras afirma que “As coisas que estão no cosmo unitário não se separam umas das outras, nem com machado podem ser cortadas”. Que tipo de ferramenta ou utensílio humano seria capaz de quebrar esta unidade? Estamos falando de uma unidade muito profunda, que une umas coisas às outras, que foi estabelecida no estado primordial da mistura:



Fragmento 3: Não existe o mínimo [no que se refere] ao pequeno, senão que há algo sempre menor (pois o que é não pode ser cortado até não ser). Também para o grande há algo sempre maior e é igual ao pequeno em quantidade, pois cada coisa com respeito a si mesma é tão grande como pequena.

Fragmento 6: Posto que as partes do grande e do pequeno são iguais em quantidade, também por isto estarão todas as coisas em tudo. Não existe o ser separado, senão que todas as coisas participam de uma parte de tudo. Já que não existe o mínimo, não será possível que algo seja separado, nem que seja gerado por sua conta; senão que, como no princípio, também agora estão todas as coisas juntas [...].

Estes dois fragmentos complementam o argumento de que o ser é pleno e não há vazio: toda divisão se desenrola ao infinito – imagine, por exemplo, o universo complexo de todos os micro-organismos que formam nosso sangue e as dimensões que se ocultam por trás da capacidade nossos microscópios. Neste sentido, vejam que curioso, “cada coisa com respeito a si mesma é tão grande como pequena”! O sistema sanguíneo de um ser humano, da perspectiva de uma célula, pode ser tão complexo quanto é para nós o sistema solar. Trata-se apenas de uma questão de perspectiva! E, pasmem, em alguma medida nós somos constituídos da mesma matéria, da mesma energia de uma estrela que esteja há anos-luz da Terra.


Esta é, na minha opinião, uma das cosmologias mais belas que os antigos nos legaram – e, curiosamente, em fragmentos. Quem compreende “que tudo está em tudo”, compreende: que há partes de muitas coisas em nós e nós mesmos estamos completamente integrados com o mundo; que há uma comunicação, um fluxo, incessante de energia que passa através de nós a todo instante; que, por mais que tenhamos um corpo delimitado por certas linhas e superfície, nós, mesmo assim, estamos como que dissolvidos por todo o universo. E isto não se vê com os olhos, mas intui-se, sente-se com a própria alma, numa espécie de despertar de uma lembrança antiga de que somos parte de um todo e só existimos a partir dele. Através da metáfora da mistura, Anaxágoras, criativamente, consegue dar conta de conciliar a multiplicidade sem aniquilar a unidade – como referi-me anteriormente, uma questão importante aos filósofos antigos era saber se o ser era uno ou múltiplo; de fato, os fenômenos são variadíssimos, com qualidades muito distintas, mas esta variação e multiplicidade que revela a condição de todo e qualquer ser: estar mesclado, estar num estado de pura composição com aquilo que o rodeia – um ser humano não é idêntico a si mesmo, pois ele é composto de muitas partes diferentes entre si; no entanto, é isto que o faz igual a todas as outras coisas.

Muitas outras coisas ainda poderiam ser exploradas a partir dos fragmentos deste filósofo – a concepção de morte como dissolução, as sementes que cada ser guarda em si, os movimentos que formam a vida –, mas o espaço para este texto está terminando. A quem interessar, deixo abaixo a relação de alguns textos (alguns disponíveis online) onde vocês podem aprofundar os temas que apresentei brevemente neste artigo.


Murilo Patriota

murilo-patriota@hotmail.com



Bibliografia

BARNES, Jonathan. The Presocratic Philosophers. Routledge: 1979, London.

BORNHEIM, Gerd A. (Org.). Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 2005.

LAKS, Andre. Introducción a la filosofia “présocrática”. Traducción de Leopoldo Iribarren. Madrid: Editorial Gredos, 2010.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

MARMODORO, Anna. Everything in Everything: Anaxagora’s Metaphysics. New York: Oxford University Press 2017.

TORRIJOS-CASTRILLEJO, David. Anaxágoras y su recepción em Aristóteles. Roma: Edizioni Santa Croce, 2014.

SOUZA, José C.; KUHNEN, Remberto F. et al. Os Pré-Socráticos: Fragmentos, Doxografia e Comentários. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

[1] Este termo possui diversas significações: mente, espírito, inteligência, razão etc. Mas, a significação que julgo caber no contexto desta cosmologia é a de inteligência com propósito ou prudência, no sentido de que a sua ação tem em vista um plano, um projeto com determinadas finalidades. Aqui infelizmente não poderemos falar sobre as características desta Inteligência, apenas referir de passagem.


Palavras-chave: #Cosmologia #Filosofiaantiga #Metafísica #Participação

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