É o vegano o animal mais evoluído da nossa cadeia moral?
O modo de vida vegano é determinado por inúmeras variáveis culturais, antropológicas, econômicas, existenciais. Todos esses elementos se conjugam, direta ou indiretamente, para determinar as escolhas dos indivíduos que adotam o veganismo como estilo de ser e viver. Isso porque o vegan lifestyle envolve uma multiplicidade de concepções sobre a natureza dos alimentos, seus usos, os modos de produção, o preparo, o consumo, as tradições culinárias, os hábitos alimentares e, finalmente, qual relação devemos ter com os outros seres vivos no que concerne à nossa alimentação e aos demais aspectos da nossa existência (vestuário, cosméticos, lazer, diversão).
O ato alimentar, ao se conjugar a uma cadeia de outros eventos, é marcado pela complexidade, pois diz respeito ao modo como nos posicionamos em face do mundo, do outro e de nós mesmos. Por isso, as escolhas que fazemos acerca do que deve constituir a nossa alimentação refletem também a maneira como concebemos a relação entre natureza e cultura, servindo ainda para balizar nossa conduta em face dos animais não humanos. Assim, todo o processo que culmina na decisão de o sujeito aderir ou não ao veganismo está permeado de valores, os quais são, notadamente, determinados por informações, convicções, julgamentos e, sobretudo, sentimentos morais.
Sim, porque, como sabemos, os parâmetros que regulam o relacionamento dos homens com os outros animais são determinados, preliminarmente, pelos afetos. Tais experiências sensoriais são basicamente caracterizadas por sentimentos morais, como a empatia, a indignação, a vergonha, a culpa. E, embora haja gradações diferenciadas entre esses sentimentos de acordo com o nível de afeição que temos para com determinadas classes de animais (selvagens, domésticos, próximos, distantes), o modo como reagimos ao que sentimos determina a constituição e a amplitude da nossa estatura moral.
Eis por que devemos investigar as bases simbólicas e morais do veganismo, não apenas para compreender a dimensão de tal fenômeno, mas também para identificar alguns limites e desafios que acompanham tais práticas. A “moral vegana”, ao se basear numa posição antiespecista, considera que existe uma continuidade natural entre animais humanos e não humanos, posto que estes gozam de dignidade e interesses, tal como acontece com os seres humanos.
O veganismo exige o concurso de princípios, convicções e juízos. Porém, nada disso se afigura importante se a “filosofia vegana” não se torna uma prática efetiva de vida. Em outras palavras, o veganismo ganha importância na medida em que deixa de ser apenas uma crença ou um conjunto de ideias e se transforma em uma atitude, em um modo de vida. Ademais, embora os hábitos alimentares sejam influenciados pelos costumes e tradições, eles envolvem escolhas morais, já que não são apenas a expressão de predileções, gostos ou prazeres gustativos forjados ao longo do processo civilizatório.
Os vínculos entre alimentação e moralidade fazem parte do percurso da humanidade. Os alimentos que consumimos e o modo como estes nos chegam possuem indiscutíveis implicações morais, haja vista que o estilo de vida vegano reflete também uma reação ao uso alimentar dos animais não humanos e também à crueldade e ao sofrimento que lhes é infligido em vários setores da sociedade e da cadeia produtiva. Assim, a maneira como nos relacionamos com os alimentos que consumimos em todas as suas formas e derivações envolve valores (o bem e o mal, o certo e o errado, os custos e os benefícios, o necessário e o contingente) que constituem os princípios que regem as nossas ações.
A ideia de que o veganismo implica uma postura moral parece inquestionável. Todavia, convém discutir se as preocupações morais do vegano o colocam em um estágio mais elevado quando comparado aos demais indivíduos da comunidade moral? Em outros termos, convém indagar: ser vegano reflete um estado ou posição de superioridade moral? O veganismo seria o último reduto dos bons, justos e compassivos? Poderíamos conceber tal prática ou conduta de vida como um indício de progresso moral? Por fim, seriam os veganos portadores de “hipertrofia moral” a ponto de, na escala axiológica, ocuparem até mesmo um lugar acima dos vegetarianos?
Ora, a excelência moral é uma disposição para praticar as virtudes que nos tornam sujeitos morais exemplares naquilo que fazemos (Aristóteles,1992). O veganismo seria, pois, a expressão de uma elevação moral em relação às práticas alimentares calcadas no reconhecimento da dignidade e do interesse dos animais não humanos, no combate ao sofrimento e à condição degradante a que são submetidos e, por fim, na defesa da vida de tais seres.
O veganismo aparece, desse modo, como uma das formas possíveis de se responder à questão socrática (como devemos viver?) e sua prática revela um estilo de vida baseado em crenças e atitudes morais. Por isso, é justo que o vegano venha a se orgulhar de sua elevação moral em relação às suas práticas alimentares ou à condenação do uso indevido de animais para múltiplos fins, porém tal conduta, como sabemos, não o livra da obrigação de manifestar atitudes virtuosas em outros domínios da sua vida, nem, tampouco, tal comportamento lhe garante um lugar cativo no reino da moralidade eterna.
Marconi Pequeno
Professor Titular de Ética no Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutor em Filosofia pela Universidade de Strasbourg II e Pós-Doutor em Filosofia pelas Universidades de Montréal e Paris X (Nanterre), colunista do Bloguesia
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, Brasília: Editora da UnB, 1992.
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